AS MULHERES DA MINHA VIDA

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Muito embora esta coluna saia no dia 05 de março, resolvi antecipar minha modesta homenagem às mulheres, glorificando as que ajudaram a formatar meu pensamento estético, intelectual, social, as que foram direta ou indiretamente responsáveis por me transformarem, ao longo das décadas, neste jovem senhor que não deseja estar sempre certo, mas que dá um boi para não entrar numa discussão e uma boiada para permanecer nela, quando necessário.

Vou dispensar as referências de praxe, minha mãe, minha irmã, por questões diversas – não por falta de afetividade, nunca. Mas minha irmã faleceu muito jovem e minha mãe, embora tenha me ensinado a prática da cozinha e o gosto por música e literatura, acredito que era o papel a ela creditado.

Janete Costa, a arquiteta que trouxe a brasilidade para dentro das residências mais elegantes, com um quociente de originalidade

Então, vamos às mulheres da minha vida, começando por Janete Costa, a arquiteta que trouxe a brasilidade para dentro das residências mais elegantes, com um quociente de originalidade jamais visto por mim até então.

Janete era uma sumidade de cultura, detentora de um repertório vasto e desprovido de dogmas, sempre aberta ao novo, mas ciente de seus valores sólidos, ancorados na ancestralidade das manifestações artísticas e culturais de nosso país. Isso, há mais de três, quatro décadas atrás, quando os termos povos originários e ancestralidade não estavam na moda como hoje.

Janete apregoava as qualidades da cultura popular, ou não erudita como prega até hoje sua amiga Vilma Eid, dona de um acervo de arte “não erudita” invejável. A convivência com Janete era um contínuo aprendizado – ela cozinhava pratos regionais com esmero e apresentação internacionais, e seus jantares – em sua casa num condomínio na Niemeyer – eram concorridos, estivéssemos sentados à mesa nas cadeiras de Mackintosh, desenhadas na primeira década do Século XX, ou espalhados pelos confortáveis sofás e poltronas Charles Eames, bebendo em taças deslumbrantes e deslumbrados com a jovialidade que transparecia em suas ações, sentimentos e pensamentos.

Sua noção de coleção era vasta, não era fechada em um único período ou origem – tinha vidros de farmácia estupendos, obras de arte antiga convivendo com Tomie Ohtake, Roberto Burle Marx e outros artistas mais jovens, arte popular lado a lado com peças do melhor Art Déco, um cavalo de carrossel que ela e o marido, o genial Acácio Gil Borsói trouxeram de Portugal, uma coleção de almofarizes e pias batismais sob a escada de entrada, alguns relevos de Joaquim Tenreiro de primeira grandeza, tudo extremamente bem colocado – e aqui, tenho que fazer um aparte, contar uma história…

Janete foi a primeira profissional a assinar uma vitrine de loja de móveis na história do Brasil, a convite meu e de Eduardo Machado, para a marca Artefacto, ainda no subsolo do Rio Design Center, no Leblon. Entre duas pinturas de Tomie Ohtake, um bar art déco que veio de um antiquário de São Paulo e uma profusão de garrafas, taças, vasos e esculturas, Janete pediu-me algumas caixas de morango para enfeitar um imenso bowl Verliz que estava ao centro da mesa. E começou a colocar morango por morango neste bowl, cuidadosamente.

Eu perguntei “...Janete, não é mais fácil derrubar tudo e dar uma ajeitada?” – no que ela me respondeu “…Wair, tenho que colocar com muito cuidado para parecer displicente, natural...”. Eu fiquei mudo, claro. Com ela conheci Roberto Burle Marx, genial até a última mecha de cabelo, tive o prazer de ficar amigo de seus filhos Mário Santos, Lucia, Cacau, Roberta, e estar com essa querida amiga e imensa mulher era um prazer imenso. Tinha que louvá-la…

 

 

Mônica Filgueiras de Almeida foi a mulher que pavimentou o mercado de arte no Brasil, ao montar as primeiras casas de leilão.

Mônica Filgueiras de Almeida foi a mulher que pavimentou o mercado de arte no Brasil, ao montar as primeiras casas de leilão. Começou como monitora da Bienal de São Paulo, depois naturalmente virou galerista, e tinha uma cultura de arte acintosa, invejável, e um faro para jovens artistas que raramente eu vi.

Foi amiga íntima de Mira Schendel, Willys de Castro, Hércules Barsotti, Wesley Duke Lee, foi retratada magnificamente por Flávio de Carvalho (e de forma bastante erótica por Duke Lee), tinha um busto deslumbrante esculpido e pintado por Florian Raiss, trabalhou com Salvador Dali em Cadaqués, na Espanha, editou gravuras de Leon Ferrari, acompanhou as loucuras de Ivald Granato e Antonio Peticov, ou seja – boa parte da arte brasileira passou por ela.

Tinha um refinamento nos gestos e no uso das palavras invejável. Com ela aprendi a pedir a melhor versão de Dry Martini, que consumíamos em um restaurante badalado ao lado de sua Galeria, quase toda tarde. Três drinks depois, voltávamos à Galeria, que era praticamente um meeting point de artistas, marchands, colecionadores ou apenas interessados. Ela não só me apresentou um panteão de artistas como me ensinou a enxergar a arte de uma outra maneira, mais emocional, desobrigando-se de dogmas rígidos pois acreditava na pluralidade.

Trabalhava com os artistas e obras que gostava, e não as que estavam em voga ou eram mainstream. Cansei de ver marchands conhecidos comparecerem à sua sala para pedir sua opinião sobre se aquele Volpi era autêntico, ou se aquela assinatura de Ismael Nery era original, pois Mônica não tinha apenas o conhecimento formal, ela tinha “o olho”, aquele elemento inexplicável que os anos de dedicação e o apreço por seu metier haviam conferido a ela.

Com ela aprendi a gostar das gravuras intensas de Iberê Camargo, Goeldi, umas gravurinhas minúsculas feitas à maneira negra de um gravador japonês cujo nome me fugiu, mas ainda vou reencontrar, me apresentou o grande fotógrafo Mario Cravo Neto, Barsotti foi jantar em casa com ela, me apresentou meu grande amigo até hoje e imenso e internacional artista Macaparana, e como eu adorava Keith Jarret, Schnauzers, whisky Cardhu e toda sorte de acepipes servidas nos balcões dos bons bares. O mundo ficou menos delicado depois de sua partida, eu sinto isso…

 

Edith Farjalla acaba de completar 90 anos. Com uma cabeça jovem...outra mulher culta até o último fio de cabelo, foi uma das responsáveis por criar a empresa de tapetes Casa Caiada décadas atrás, com o intuito de dar empoderamento às mulheres no Nordeste, em uma época que estas só podiam cuidar da casa, dos filhos e da roça

Minha amiga Edith Farjalla acaba de completar 90 anos. Com uma cabeça jovem…outra mulher culta até o último fio de cabelo, foi uma das responsáveis por criar a empresa de tapetes Casa Caiada décadas atrás, com o intuito de dar empoderamento às mulheres no Nordeste, em uma época que estas só podiam cuidar da casa, dos filhos e da roça. Seus tapetes ganharam o mundo, e esse quociente originalidade + uma grande ação social deve ter transformado a vida de muitas mulheres.

Edith ainda gerou uma filha talentosíssima e uma neta genial, Fernanda e Gabi – a primeira é designer de interiores e a segunda é uma jovem e ultra respeitada curadora de arte, com um conhecimento de história da Arte que irrita. Puxou à avó, que tem uma memória acintosa e um conhecimento vasto.

Tive a sorte de fazer algumas viagens à Paris e New York com ela, e tínhamos uma troca de informação mútua e constante. Em sua casa se comia a melhor comida libanesa feita no Rio de Janeiro, e sua assessora sabia que eu sou louco por kibe cru e já me recebia com um pratinho especial para mim, coisa de gente preocupada, delicada. Suas casas sempre foram um mescla de clássico/contemporâneo, um frescor nas onipresentes flores e nos cuidados com que colocava a mesa.

Tenho um conjunto de pratos que ela pintou para mim no ano de 2000, sessenta pratos pintados em preto, prata e cinza, todos parecidos, todos diferentes um do outro, que embora use com frequência guardo com carinho e muito cuidado, pois sei que foram feitos não apenas com esmero, mas também com amor. Embora tenham 24 anos, estes pratos são moderníssimos, e continuarão modernos, pois tem a qualidade que Edith imprime em todos os seus trabalhos, em todas as suas ações.

Ela tem um retrato em sua casa feito provavelmente nos anos 1960/1970 que parece ter sido tirado por Horst P. Horst, um dos maiores fotógrafos de moda do século XX, germano-americano, mas com uma elegância francesa, e essa fotografia é pura elegância. Uma mulher sem preconceitos, cheia de amigos das mais diferentes classes sociais e gêneros, e com ela aprendi a verdadeira percepção do termo “inteligência emocional”, a não me desgastar com quem não vale a pena. E sabe ser ferina quando necessário, o que o faz raramente, mas que eu admiro muito esta característica, a da resposta certeira, na mosca.

 

Diane Arbus, a fotógrafa novaiorquina que nasceu em 1923 e morreu jovem, aos 48 anos de idade, foi quem me fez encontrar beleza no estranho, no incomum. Seu olhar focava pessoas marginalizadas, fora do padrão, ou de pessoas comuns inseridas em seu cotidiano igualmente comum. Mas ela o fazia com um enquadramento impecável, um olhar cirúrgico, e a primeira vez que vi uma exposição dela saí completamente atônito, literalmente abalroado de tanta informação contundente.

Essa fotógrafa me revelou a possibilidade de enxergar a beleza no que pode ser comumente considerado feio, não aceitável, e isso foi fundamental para eu me posicionar numa sociedade fundamentalmente heteronormativa, desde muito jovem. Dizem que uma boa imagem vale mais do que mil palavras, eu saí da primeira exposição de Diane lotado de pensamentos, conceitos, ideias, argumentos, percepções. Foi um abrir os olhos da alma, não tenho outra explicação.

E, para quem não conhece o trabalho desta magnífica artista (fora meu amigo Denilson Machado, que também adora ela), recomendo seus trabalhos e um filme sobre ela, ligeiramente romantizado, mas que mostra bastante de seu universo – se chama Fur, ou a Pele, com Robert Downey Junior encarnando um personagem que beira ao fantástico, e que faz um sacrifício maravilhoso em nome do amor.

 

 

E termino essa elegia às mulheres com uma das maiores pensadoras do século XX, Hannah Arendt. Nascida Johanna Arendt, em 1906, essa novaiorquina de origem judaica foi uma filósofa política da maior importância, uma das mais influentes do século passado. Recusava ser classificada como “filósofa”, preferia que seus pensamentos e escritos fossem classificados dentro da “teoria política”.

Era ousada ao discutir o conceito de liberdade e igualdade política, pois contava principalmente com a perspectiva da inclusão do “Outro”. Desta forma, se situava de forma crítica ante a democracia representativa e preferia uma forma de democracia direta. Seu conceito sobre a banalidade do mal é de uma clareza absurda, e até hoje levo como lema sua frase “Em nome de interesses pessoais, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem abusos e sorriem para quem desprezam. Abdicar de pensar também é crime.”

Outra frase que nunca me sai da cabeça, e por causa dela quase fui cancelado das redes sociais nas últimas divergências políticas, afirma que Politicamente, a fraqueza do argumento sempre foi que aqueles que escolhem o mal menor esquecem muito rapidamente que escolheram o mal.” O processo do pensamento de Hannah parece se situar entre diferentes campos de conhecimento e especialidades universitárias.  Uma mulher além de seu tempo, e que hoje infelizmente, dado o nível raso das discussões que vemos as redes, seria cancelada, chamada de radical e outros adjetivos mais. Para mim, foi uma das maiores pensadoras do século XX.

 

Essa foi uma pequena homenagem às mulheres, acredito piamente que, se os grandes mandatários deste mundo fossem mulheres teríamos menos expressões de agressividade entre as nações, povos, sociedades. Não á toa, generosidade é um substantivo feminino. E parabéns às mulheres desta plataforma, amigas de longa data, profissionais de primeira grandeza.

Wair de Paula Jr.

 

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Tag: mulheres

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