O universo do design perdeu, semana passada, um grande – Gaetano Pesce (1939 / 2024). Durante mais de cinco décadas, esse arquiteto – e pioneiro do design do século XX – construiu mais do que uma carreira aclamada – ele criou uma experiência global no campo do design.
Suas inovações neste campo foram constantemente inovadoras, pois considerava irrelevantes as fronteiras entre arte, design e indústria. Pregava que a Arte não é algo a ser criado e colocado em um pedestal – a arte seria um produto, nossa resposta criativa às necessidades do tempo em que vivemos.
A primeira vez que vi a Feltri Chair (na foto que abre este post), criada para a marca italiana Cassina em 1989, eu tive uma epifania – ele estava transformando um edredom em uma poltrona maravilhosa. Todo o princípio construtivo desta poltrona é disruptivo – não existe estrutura interna. Essencialmente uma grande manta de feltro, o assento e a base desta poltrona tornam-se rígidos quando cozidos, enquanto a metade superior permanece flexível. As costas podem ser dobradas como uma gola gigante, ou enroladas como uma manta. Geralmente expostas em cores vibrantes e contrastantes, é uma das poltronas mais icônicas criadas durante o século XX.
Eu já tinha citado Gaetano aqui neste espaço, ao mostrar sua proposta absolutamente original para o desfile da marca de luxo Bottega Veneta ano passado. Ele literalmente transformou a plateia em palco, ao propor a execução de 500 cadeiras únicas, uma visão totalmente fora dos padrões deste universo. Diz a lenda que essa proposta inclusive rompeu com uma prática dos desfiles de moda – os convidados ignoraram os lugares marcados e escolheram as poltronas que mais lhe agradavam, o que deve ter criado certa confusão momentânea para os organizadores, mas inclusive isto é fruto de uma mente eternamente jovem, criativa, provocativa.
Essas cadeiras depois foram vendidas a preços consideráveis – e reforçou o discurso da marca de oferecer produtos únicos, exclusivos. Uma grande collab, e a marca – que já era uma de minhas preferidas (ao propor um quiet luxury, pois a maioria de suas peças não ostenta logo ou marca aparente) ganhou jovialidade e uma legião de admiradores abonados ainda maior.
Sua criatividade não se limitava ao campo do design para casa ou arquitetura. Sua collab para com a marca Melissa gerou uma bota com o material típico desta marca, pois Gaetano sempre afirmou gostar de trabalhar com materiais sintéticos e plásticos.
À época, para uma jornalista da área, este designer teria dito que gostaria de realizar um sapato de cristal líquido que mudaria de cor quando entrasse em contato com a luz do sol, mas que não existia tecnologia disponível para tanto, naquele momento. Na mesma entrevista, ele disse que gostaria de realizar um projeto de arquitetura no Brasil, particularmente em São Paulo – que se chamaria “Torre Pluralista”. A ideia seria que cada andar fosse criado e desenvolvido por um artista e/ou arquiteto diferente. Seria sua proposta para a seriedade arquitetônica desta cidade. Afirmava ter percebido em São Paulo um mix de realidades muito distintas, e expressar essas diferenças em um mesmo prédio seria uma experiência fantástica. Genial, não?
Tive a oportunidade recente de utilizar uma de suas mais conhecidas criações – a poltrona Up 2000, desenvolvida para a marca italiana Cassina. De formas femininas, totalmente estruturada em espuma de poliuretano, me proporcionou ótimos momentos enquanto pendurava as obras de arte nesta residência. Esta poltrona de formato quase antropomórfico realmente abraça seu usuário, e se tornou seu item mais reconhecido – e talvez o mais vendido, visto estar presente em inúmeros projetos mundo afora. Tanto que a marca – e a cidade de Milão – resolveram homenagear o designer alguns anos atrás, ao instalar uma versão gigante desta poltrona em frente à Catedral de Milão, epicentro de todo o que acontece na semana de design milanesa.
Gaetano foi um dos pensadores mais independentes na cena internacional do design. Procurou, em toda sua carreira, enfatizar a individualidade do objeto, e conseguia realizar esse intento usando materiais como resina acrílica e silicone, que, durante o processo de fabricação, “deixava” algumas coisas ao acaso. Ele ressignificou o conceito de belo, ao propor a singularidade alcançada através de falhas deliberadas e ou irregularidades, provocando uma nova forma de se pensar um produto teoricamente feito através de um processo em massa, dirigido às massas.
A poltrona Montanara acima, apresentada em 2009, é um bloco de poliuretano flexível estofado com algodão estampado através de impressão digital, feita para a marca Meritalia. Através de seus projetos e produtos, ao longo de sua carreira, Pesce conseguiu demonstrar o princípio básico de que o modernismo é menos um estilo do que um método para interpretar o presente, e sugerir um futuro em que a individualidade seja preservada – e celebrada. Um visionário, um homem que pregava sempre o caminho alternativo, que não se situava no “mainstream” apesar do sucesso de suas propostas.
Lecionou arquitetura no Instituto de Arquitetura e Estudos Urbanos em Estrasburgo, França, na Domus Academy em Milão, na Polytechin em Hong Kong, na Coopor Union em New York, cidade que decidiu se instalar após1980. E suas obras desafiam definições, seus móveis estão imbuídos de significados mais profundos – e aparecem em mais de 30 coleções permanentes dos principais museus do mundo, incluindo o MoMa de NY e São Francisco, o Metropolitan Museum de NY, o Vitra Museum na Alemanha, o Museu de Artes decorativas do Louvre em Paris e o Victoria and Albert Museum em Londres.
Uma mente criativa em constante movimento, lúdico, sem limites. Sua série de estofados Gli Amici (Os amigos), de 2009, seria uma espécie de resumo de seu pensamento estético – os limites entre arte e design indefinidos, o humor onipresente, a busca pela unicidade, a eterna intenção de propor o novo, sempre o novo. Deixou um legado inquestionável para a história do design, e Oxalá as novas gerações de designers se inspirem nesta rebeldia eternamente jovem deste grande, imenso criador.
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