Coreografias do Impossível – este é o tema / fio condutor da 35ª Bienal Internacional de São Paulo. O termo Coreografia parece ter sido escolhido pelo comitê curatorial para demonstrar movimentos que atravessam o tempo e o espaço, formando novas e infinitas imagens, e por isso vemos inúmeros trabalhos que discutem movimentos diaspóricos, posições socio/econômicas, relações ambientais e oscilações sociais. Instalações, performances, vídeos, e movimentos que expandem os limites da Bienal para fora dos limites físicos desta.
Algumas instalações realmente impressionam – como é o caso das esculturas da artista norteamericana Torkwase Dyson. Por meio de estruturas de forte apelo visual e esteticamente opressivas, Dyson discute as formas como o espaço é percebido e negociado, principalmente por corpos racializados.
As esculturas apresentadas pela artista, no principal vão do icônico edifício da Bienal, referem-se a um castelo do século XVI, localizada na Bahia. Esta construção teria tanto vistas para o mar quanto para os engenhos coloniais, espaços historicamente ligados à escravização – e, segundo a artista, seu objetivo é encontrar geografias mais “habitáveis”, na contramão das estruturas limitantes e opressoras. Essas estruturas remetem a torres, mas também a gigantescos grampeadores, reforçando o caráter opressor da ideia que originou este trabalho.
A instalação “Pink-Blue”, obra da canadense Kapwani Kiwanga nos convida a conviver com a cor em seu estado material – representando uma experiência ocorrida em uma prisão militar em Seatle, USA, que registrou uma drástica queda nos níveis de agressão entre os presidiários, após pintarem suas paredes com um tom específico de rosa.
Desenvolvida originalmente por um biólogo, de acordo com registros institucionais, somente quinze minutos observando a cor eram o suficiente para reduzir o quociente de hostilidade entre os encarcerados. Fascinante…
Outra parte deste corredor foi pintado e iluminado por uma luz azul, cujo emprego busca evitar o consumo de drogas ilícitas ao diminuir a visibilidade das veias do corpo humano. É fascinante percorrer este espaço sabendo da origem de seu conceito, um resultado de uma pesquisa sobre histórias marginalizadas e estruturas de poder.
Uma manifestação física de uma questão imaterial, e aqui o tema “coreografias do impossível” parece ter sido extremamente bem interpretado – utilizar-se de uma pesquisa de tema tão espinhoso para criar uma instalação fascinante realmente pareceria impossível em todos os desenhos possíveis.
Criaturas impossíveis e inexistentes, feitas de folhas, fios, penas e tinta, estruturas formais que apresentam patas, antenas, asas, espinhas dorsais e tudo mais que se espera de um animal e/ou inseto, são o trabalho da filipina Geraldine Javier.
“Criaturas à procura de suas espécies”, nome desta série criada em 2012, mostra imagens fortemente baseadas com nossa relação – nem sempre suave – com o mundo natural. E o título da série parece induzir a uma ideia de um futuro regenerativo, de espécies que já não mais existem na qualidade de colônia, mas sim como exemplares únicos, últimos – porém à procura de seus pares, o que subverte o pensamento catastrófico que vem de imediato. Uma realização a respeito do desconhecido, ou do que se configuraria no campo das impossibilidades, demonstrado de forma poética e extremamente delicada.
Francisco Toledo (1940-2019) navegou por diversas linguagens, mas ficou especialmente conhecido por seus trabalhos feitos em papel, principalmente gravuras e pinturas, sempre com um foco didático – a construção de uma prática artística implicada com as heranças culturais e políticas de sua comunidade (Oaxaca, México). Sua obra baseia-se em memórias, infância, mas – sobretudo – na observação de seu meio, focos de um artista que passou boa parte de sua vida empinando papalotes – pipas – como forma de sua ação política.
Papalotes de los desaparecidos (2014), o projeto exposto nesta 35ª Bienal de São Paulo, é uma manifestação-denúncia de um protesto ocorrido em 2014, quando 43 estudantes, em sua maioria indígenas, foram sequestrados pela polícia municipal. E, quando chega o Dia dos Mortos, soltam-se as pipas pois acredita-se que as almas desçam pelo fio e chegam à terra para se alimentar das oferendas, para, no final da festa, voltarem ao plano astral. Como os alunos sequestrados foram procurados (e não encontrados) na terra e na água, as pipas teoricamente estariam procurando-os nos céus. Triste, violento, mas manifestado de forma extremamente poética.
A obra seminal do baiano Rubem Valentim, pintor, gravador, escultor e professor, é um manifesto contínuo do sincretismo artístico/religioso, da junção de elementos do modernismo e da abstração geométrica com a estética das culturas de matrizes africanas. Seu trabalho incorpora símbolos e motivos oriundos da cosmogonia do candomblé, criando uma geometria abstrata através de triângulos, círculos e trapézios ligado às raízes de uma cultura religiosa de maneira forte, original, emblemática e quase sacra.
Templo de Oxalá, exibida originalmente (porém parcialmente) na 14ª Bienal de São Paulo, e agora exposta de forma integral, concretiza o pensamento e o legado do artista. O templo é a celebração e ao mesmo tempo a manifestação de uma poética visual brasileira, que estabelece uma identidade para expressar suas conexões entre o físico e o metafísico.
A experiência do tempo sob a ótica indígena se assenta, geralmente, em fundamentos míticos que se inscrevem na vida cotidiana através dos ritos. Desta forma, a percepção linear do tempo tal como concebida pela maioria da civilização, é incompatível com a concepção do tempo entre as culturas ameríndias. E o amazonense Denilson Baniwa, artista visual, publicitário e defensor dos direitos indígenas aponta em sua obra Kwema/Amanhecer sua pesquisa sobre integração entre obra e comunidade. Através desta, ele explicita os procedimentos técnicos que demonstram a passagem do campo da representação para o da vivência, e mostra o ato da partilha de conhecimento, da colheita e da alimentação como uma efetivação da reelaboração da memória, e, porque não dizer, da história.
Aqui reside uma das questões fundamentais desta Bienal – reescrever e discutir a história como a conhecemos, sempre fundamentada sob a ótica eurocêntrica ou dominadora. E o trabalho de Baniwa ganha ainda mais relevância, ao discutir questões como tempo e a percepção deste, sob o prisma de culturas diferentes. Discutindo o tempo, discutimos toda a história, uma importante questão contemporânea.
Outra importante e contemporânea questão social da América Latina é a problemática das migrações, sendo o México o país de emigrantes que mais se deslocam sem documentação, criando contínuos problemas na travessia ilegal da fronteira com os Estados Unidos. Guadalupe Maravilla traz essa discussão para o chamado Triângulo Norte da América Central, formado por Honduras, Guatemala e El Salvador, seu país de origem. Na década de 1980, quando El Salvador se apresentava no ápice das guerras de contrainsurgência da região, o trânsito forçado de pessoas que fugiam da violência era significativo. Guadalupe foi uma das muitas das crianças que fizeram a fronteira sem documentos, e sem estar acompanhada dos pais.
Hoje ela contextualiza essa experiência ao contar as cicatrizes que esses movimentos causaram nestas pessoas em trânsito. E, para tanto suas propostas artísticas são cenografias sobrecarregadas de gestos, objetos e mecanismos que são instalados como retábulos. E em muitos destes encontramos traços do jogo infantil tradicionalmente conhecido como Tripa Chaca, resultante da união de números com linhas e desenhos retirados de códices e tecidos antigos estampados com histórias que remetem a comunidades pré-colombianas, e sua participação nas redes de conhecimento e poder.
Intitulada Desease Throwers (lançadores de enfermidades), sua instalação é um conjunto montado com materiais moldáveis e instrumentos musicais que, através de uma vibração específica, geram espaços terapêuticos que induzem à resiliência. Novamente questões de relação com o poder – divino ou terreno – são levados em conta em mais uma obra que tenta coreografar o impossível.
Não podia deixar de citar a obra de Rosana Paulino, uma das figuras de proa do cenário artístico brasileiro. Sua obra está centrada em questões da construção do ideal do corpo feminino, principalmente preto, onde hipersexualização, relações nocivas e redução da situação das mulheres na sociedade são discutidas. Revela, em sua obra, como algumas teorias “científicas” fundamentaram as teorias raciais na história como a conhecemos. Seu papel de educadora e, principalmente, de intérprete de um novo Brasil transforma o corpo em um lugar que abriga questões a serem revisitadas.
Ao reivindicar as afetividades e lugares expropriadas, revela a proximidade destas mulheres com a natureza, ao mostrar corpos que se fundem ao solo, enraizados, ampliando a valorização de outros conhecimentos, todos embasados na ancestralidade. Aqui, não consigo deixar de traçar um paralelo com estas imagens e as personagens principais do magnífico livro Torto Arado, de Itamar Vieira. Para quem não leu, recomendo. Para quem não conhece a obra de Rosana, recomendo mais ainda.
A impressionante obra Timur Merah Project IX – Beyond The Realm of Senses, da artista balinesa Citra Sasmita, é outra que – apesar de reconhecer a beleza das tradições – discute questões como patriarcado e colonialismo. Ao fazer uso da pintura em estilo Kamasan (um tipo de pintura secular e tradicional da região), que era um modo com o qual os povos indonésios mais antigos (do século XV ao XVIII) representavam calendários e, sobretudo, manifestavam feitos heroicos das elites masculinas, a artista compõe uma nova iconografia.
Agora, o protagonismo se dá através de mulheres indonésias de longos cabelos negros, onde o vermelho do sangue e do fogo jorra das cabeças, ventres, ou de corpos que se incendeiam e se mutilam em sofrimento, expressando de forma explícita as dores da opressão sofrida sob o patriarcado. Mas, curiosamente, em maravilhoso paradoxo, de seus corpos mutilados brotam árvores, galhos, crescendo em direção aos céus (um belo paralelo com a obra de Rosana Paulino neste sentido), verdadeiras deusas que reescrevem a história sob uma ótica muito particular.
A 35ª Bienal de São Paulo é imensa, isto é apenas um pequeno apanhado de algumas coisas que me tocaram – sem contar as obras de Arthur Bispo do Rosário, mas este merece um post só para ele, tamanha a magnitude de sua obra. E, se conseguiram ou não “coreografar o impossível”, lograram discutir questões muito importantes que estão em pauta – a descentralização da história que sempre orbitou sob a ótica eurocêntrica e masculina, revisitar e denunciar momentos migratórios forçados, discutir questões patrimoniais e sociais.
Imperdível. E vai até o dia 10 de dezembro, com uma longa série de manifestações fora dos perímetros geográficos da Bienal. Vale muito a pena…
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