A Criança em nós

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O escritor português José Eduardo Agualusa escreveu, em uma matéria recente, uma frase lapidar que guardei em virtude de meu apreço pela língua portuguesa: “...Ao ameninar-me recupero a capacidade de ver o explícito, tudo aquilo que temos diante dos olhos.” Palavras extremamente bem escolhidas para um texto que fala um pouco do assunto de nosso último* post – o poder da criança em nós, que existe em cada um de nós.

Agualusa discorre, de forma poética, sobre as vantagens de não menosprezarmos esta condição, para que nossos olhos estejam livres de dogmas e amarras para tudo o que acontece e aparece à nossa volta. E cita Picasso, que teria afirmado “…levei quatro anos para pintar como Rafael. Levei a vida toda para aprender a desenhar como um menino...”. Posto isto, que nossos sentidos estejam acurados para as pequenas percepções do cotidiano, que nossa criança interior não seja sabotada por nossas questões adultas, que nossos sentimentos amadurecidos não deixem de se encantar com coisas como o projeto que abre este post, uma poltrona em forma de gatinho – resultado da inteligência artificial, mas de inegável aparência não tecnológica e muito, muito fofa.

A Criança em nós

Confesso que eu ainda devo estar sob a influência da vídeo-palestra que vi de Lidewij Edelkoort que vi algumas semanas atrás, a “previsora de tendências” que viaja o mundo estudando as tendências socioculturais, para depois traduzir para diversos ramos como o design, design de interiores, moda, varejo, etc.

Um de seus painéis explorava o tema “The Inner Child”, propagando a reverberação das ideias, conceitos e pensamentos do universo infantil para vários campos – principalmente para o design. E é sobre isto que falaremos novamente, pois é um mundo de propostas altamente aceitáveis para nossas realidades.

Das mais poéticas às mais simples, aproveitar-se da originalidade dos conceitos que perpassam a infância (com responsabilidade), podemos afirmar que os criativos em geral têm provocado sua “inner child” a fim de obter resultados únicos – como prova o trabalho de Diego Cabezas, com suas interações entre as esculturas que cria e a paisagem. Desenhos simples que absorvem o universo, delicado, divertido…

A Criança em nós

Assim como suas esculturas mais “estáticas”, em cores fortes, que parecem rabiscos feitos por uma criança sobre uma folha de papel. Uma economia de linhas que esconde um pensamento analítico forte, objetos equilibrados em poucos pontos, extremamente lúdicos, e ainda assim elegantes. É extremamente agradável ver o pensamento adulto passear por este universo, provocando nosso olhar – ao mesmo tempo que promovem nosso desejo de ter coisas novas dentro de casa, originais, únicas e fora do habitual.

A Criança em nós

Lara Bohinc, após uma década de joalheria na prestigiada Maison Cartier, decidiu embarcar na criação de peças funcionais, para em 2016 lançar seu Estudio – Bohinc Studio – dedicado ao design de móveis e objetos. Este estúdio cria trabalhos de desenho icônico, empregando princípios do artesanato somados a técnicas modernas de fabricação, produzindo desde peças únicas até edições limitadas. Para a Miami Design District deste ano, Lara propôs uma linha de móveis que parecem bolhas de chiclete sobrepostas, em candy colors, em produtos extremamente bem-acabados, originais e – novamente, lúdicos, explorando nossos sentimentos mais infantis, exaltando a criança em nós como manda sugere este texto.

A Criança em nós

A Criança em nós
A Criança em nós

As formas antropomórficas e surreais do norteamericano Chris Wolston surpreendem com o humor – necessário neste universo – e a alta manufatura, explorando uma ancestralidade fabril colombiana. Aqui, as raízes originárias se encontram com o universo dos cartoons, e esta sequência de poltronas (e um espelho) me dá uma vontade absurda de estourar o cartão de crédito. A originalidade de suas propostas encontrou eco na perfeita manufatura histórica da Colômbia, e este dublê de artista e designer hoje cria produtos para marcas do primeiro time de luxo como Fendi e Dior. Eu já imagino bolsas em palha com formatos divertidos percorrendo as passarelas destas marcas num futuro próximo, com as consumidoras ávidas para  exibir esta ou    aquela bolsinha. Design divertido, original, de qualidade – a criança interior deste jovem parece ter sido bastante provocada para obter estes resultados únicos. Se eu tivesse um wish list¸ este produto estaria no topo.

A Criança em nós

A Criança em nós

A obra/instalação acima é uma criação do artista Mike Kelley (1954-2012), e sua obra foi descrita pelo New York Times como “…um dos artistas americanos mais influentes do último quarto do século XX, um comentarista pungente sobre a cultura popular e a rebelião juvenil…”. Denominada “Deodorized Central Mass With Satellites”, era composta de uma gigantesca escultura que reunia volumes com inúmeros bichos de pelúcia, todos de costas, sem mostrar as carinhas destes.

Uma metáfora da inocência perdida, talvez, ou uma sugestão de trauma e/ou dor em um imenso site specific cheio de fofura e cor. Ou seja – não apenas o design de produtos se utiliza deste universo, mas a arte, a moda, qualquer campo onde a criação se destina ao mercado consumidor pode se apropriar destes fundamentos, desde que forma ética, condição fundamental.

A Criança em nós

A série de relógios criada pelo designer Jonatahan Casella, vista recentemente na Design Miami, parece um trabalho de escola infantil, não um produto exposto em uma das principais feiras de Design do planeta. Uma irregularidade nos acabamentos, formas primarias, acabamento rudimentar, em peças de valor acima da média.

Confesso não ser muito afeito a este aspecto do pensamento da criança interior – peças literalmente transportadas desta estética e/ou pensamento, sob uma ótica cujo resultado parece repetir os valores deste universo, e não traduzi-los para a realidade adulta. Prefiro as poltronas de Chris Wolston…ou então, as cerâmicas abaixo, extremamente bem executadas.

A Criança em nós

A esculturas e formas escultóricas de Aleph Geddis, que cresceu nas Ilhas Orcas – no Noroeste do Oceano Pacífico – trafegam na intersecção de métodos tradicionais e formas híbridas, ora modernistas, ora puramente infantis. Uma elegância formal permeia seu trabalho, parecem propagar uma realidade para além da subjetividade humana, de uma existência mágica que nos precede e que continuará, com a qual temos o prazer – infantil – de experimentar e interagir. E o prazer – adulto – de analisar e obter, colecionar.

Aleph afirma que continuará a usar essas formas como um lugar para explorar os paradoxos que nos cercam, bem como para fazer alguma oferenda de beleza e integridade ao mundo. Dá vontade de ver um desenho animado tomado com estas formas quase extraterrestres, seus produtos têm uma excelência de manufatura que beira a perfeição, e dá para imaginar um roteiro inteiro permeado por estes seres e formas. Mais um daqueles produtos que me provoca ímpetos consumistas…

A Criança em nós

Los Palhacitos, a ourivesaria em madeira de Elizandro Rabelo, autodenominado O Designer Artesão, reforça o lúdico através de uma manufatura impecável. Disponível em vários tamanhos – e preços – é um daqueles produtos que se apropriam da estética infantil para criar produtos de alta qualidade, para ser colocado em estantes, mesas de centro, aparadores, onde a imaginação permitir.  Conseguem ser comoventes com uma economia de desenho que eu admiro muito, essa síntese da feérie infantil transportada para uma proposta mais ampla. Em minha casa, conviveria com meus santos de roca antigos, livros, pratos e vasos Lalique e obras de arte sem nenhum problema, ao contrário.

A Criança em nós

Eventualmente, nossa “criança interior” pode extrapolar os limites do bom senso e criar obras que desafiam totalmente os padrões – a edificação acima, o Pineapple Building, realmente existe, e está implantado na cidade de Bathurst, África do Sul, e não na Fenda do Bikini do desenho do Sponge Bob. Projeto de 1990, este edifício comporta dois pisos – um, uma loja de presentes e o outro um museu dedicado ao abacaxi, pois encontra-se em uma área onde esta fruta é produzida em larga escala. Sua coroa ainda exibe um mirante para que os visitantes possam tirar fotos da região, mas eu tenho quase que certeza de que a maioria das pessoas que comparece a esta exótica estrutura tira fotos é na frente do abacaxi tamanho família.

E terminamos esse pequeno compêndio do design que se apoia em nossa potência infantil com a poltrona de Mestre Jasson, que mora e trabalha em um pequeno povoado chamado Monte Santo, a poucos quilômetros da calha do Rio São Francisco, Alagoas. Jasson Gonçalves da Silva, nascido em 1954, figura hoje no panteão dos artesãos brasileiros cujas peças são cobiçadas e adquiridas por colecionadores, lojistas e galeristas do país e do exterior.

“… eu nasci e me criei pelejando com a madeira. Na hora de partir para a obra de arte, não teve mais tanto sacrifício…” afirma este artista autodidata, que retira do sertão alagoano o material para suas obras. Ele alega que, antes de produzir, sonha. Inconscientemente, sua inspiração na flora e na fauna reforça um tema comum ao homem – a Terra Prometida, provedora, raiz imemorial das criações de todos que nela pisaram.

Esse quociente “raiz”, não erudito, traduzido do sonho, é o que podemos encontrar quando deixamos nossa criança infantil aflorar – e produzir, este jorro criativo quase infinito, seja transportado para peças mais finamente manufaturadas, seja possibilitando a criação de sonhos de criadores como Mestre Jasson.

A filha do escritor português que gerou este post revelou a ele, certa manhã, que “os adultos são crianças escondidas”. A minha não está muito escondida não, se manifesta diariamente, seja em pequenas pirraças, seja no exercício criativo. Mas quero crer que o potencial criativo do homem, se bem direcionado, poderá transformar o mundo de forma indelével. E isto não é uma crença, apenas – é uma esperança.

*clique aqui para ler o post anterior

 

Perfis:

www.bohincstudio.com / @diegocabezas00 / @jonathan_casella / @chriswolston

www.artesol.org.br / www.moma.org / @alephgeddis / www.odesignerartesao.com.br

 

Wair de Paula Jr.

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