“É a sua vida que eu quero bordar na minha,
Como se eu fosse o pano e você fosse a linha…”
Eu acho que poucos poetas são tão capazes de transformar cenas do cotidiano em pérolas como Gilberto Gil, o autor desta canção. Em tempos de violência generalizada, radicalismos de toda sorte e posições extremadas, considero que se todos os homens fossem capazes de praticar ações prosaicas como bordar algo, ou fazer uma tapeçaria, não pensariam em conquistar terras, espaços, sociedades…O ato de focar sobre uma tela e pacientemente começar a construir uma imagem, com foco e delicadeza, seguramente transformaria os homens em mais pacientes e – literalmente – mais humanos. Esses fazeres manuais poderiam transformar o mais genioso dos homens em um ser mais tranquilo, cioso de seu lugar no mundo e responsável por suas atitudes, apenas por suas atitudes, sem se preocupar com conquistas ou ocupações fora de sua área.
Recentemente, descobri o termo Arazzo, através de minha grande amiga Francesca Alzatti, que junto com seu marido Kamyar Abrapour conseguiu transformar o cenário dos tapetes no mercado nacional, através de ações positivas e sempre muito conscientes. Arazzo, em suma, nome de origem italiana, define um produto têxtil específico para a parede, que nasce sempre de um grande artista que o projetou como um quadro.
Eu confesso ter certa restrição á utilização de obras de arte conhecidas para serem transformadas em outro produto – quase nunca o/a artista que a criou está presente para acompanhar todo o processo de adaptação de sua obra para uma outra “plataforma”, digamos assim. Por isso, eu implico um pouco com a utilização da obra de Tarsila do Amaral, por exemplo, para ser transformada em estampas de roupas, cerâmicas ou até Arazzi – as nuances presentes na obra desta grande artista podem se perder em outras superfícies e utilizações.
Isso sem contar nas questões de proporção, eu considero por demais o artista para desqualificar que ele pensou a obra naquele tamanho específico, para aquela data específica, dentro de um cenário específico.
Mas alguns artistas me parecem mais “palatáveis” para ter sua obra transformada em outro produto – como é o caso de Niobe Xandó, cujo arazzo abre este post. Boa parte de seu trabalho está ligado à uma forte corrente de pesquisa ligada à fonte, um movimento das décadas de 1960/1970 que pretendia criar uma nova escrita com base em símbolos.
Este tema me veio à mente após uma visita ao Hotel Rosewood em São Paulo, que tem um magnífico tapete (executado pela By Kamy, dos meus amigos acima citados) desenhado pela artista plástica Regina Silveira, que percorre os ambientes de entrada com um tema de insetos sobre um fundo que vai mudando de cor ao longo de seu caminho. Mas, neste caso, os tapetes foram criados e desenhados pela artista pensando já nesta superfície.
E eu dei um pulo na loja para ver o tapete mais de perto, não ficava bem em ajoelhar no chão do hotel para ficar observando aquela maravilha. E encontrei uma série de arazzi desenhados por Regina Silveira com os temas mais variados – e o de tema Fauna Mix Marítimo, acima, me fez literalmente capotar. Com apenas duas cores (branco e preto) sobre um fundo degradê azul, parece ter uma infinidade de cores, obra de quem dominou a técnica com segurança e muita, muita originalidade. Uma obra de arte em todos os sentidos, tanto de criação quanto de execução – e quem me conhece sabe de minhas questões sobre a qualidade “física” de uma obra e/ou produto. Nessas horas eu me ressinto de não ter mais paredes (e um cartão de crédito ilimitado) disponíveis em casa, esta tapeçaria ficaria linda em meu quarto.
Eu ainda estava com o tema fresco em minha mente, quando, ao entrar em um antiquário, encontrei a beleza acima, uma tapeçaria de Jean Gillon, o multimídia que foi cenógrafo, designer de móveis, escultor e pintor – e fez tapeçarias impressionantemente belas como esta acima. Este romeno nascido em 1919 marcou a história do design brasileiro de móveis com o trabalho que desenvolveu em nossa terra – e como mestre tapeceiro, pois ao longo de sua vida ele participou de mais de 80 exposições e eventos de arte em nosso país, sendo que 60 destas mostras referem-se à sua produção de tapeçarias. Apesar de sua origem romena, sua obra foi marcada pelas cores e desenhos representativos da cultura, clima, flora e fauna brasileiras.
Quem tem um belo acervo de tapeçarias desta época (e principalmente deste criador) no Brasil é a Galeria Passado Composto Séc.XX, especializada em móveis, luminárias e objetos de decoração dos maiores criadores destas áreas, cuja produção foi feita/pensada principalmente na primeira metade do Século XX. E a tapeçaria acima está no acervo de raridades deste imponente espaço situado no bairro dos Jardins, em São Paulo. E é interessante notar que, após um período de certo ostracismo dentro do design de interiores em nosso país, as tapeçarias voltaram a aparecer nos melhores projetos – o que fez com que os preços desta retomassem seus vários dígitos, para desespero daqueles que como eu têm bom gosto com orçamento limitado…
Outro grande criador nesta área foi Genaro de Carvalho, que apesar de ter iniciado sua carreira como pintor, acabou por encontrar na tapeçaria o suporte e melhor forma de expressão de seu desenho. Considerado o pai da tapeçaria moderna no Brasil, surgiu no cenário artístico nacional muito cedo, aos 17 anos, ao participar do 1º Salão de Arte Americana, na Associação Cultural Brasil-Estados Unidos, em Salvador, no ano de 1944, e participou do movimento de renovação artística de seu estado junto com Mario Cravo Junior, Carlos Bastos, Rubem Valentim e Carybé, entre outros. Mas foi através de uma bolsa de arte que conseguiu para estudar em Paris que tomou contato com a tapeçaria mural, começando a pesquisar essa técnica – para em, 1950, apresentar seu primeiro trabalho formal sobre esta plataforma. E, muito cedo, aos 24 anos, participa da 1ª Bienal de São Paulo (em 1950) com suas recentes tapeçarias de inconteste originalidade, sempre em tons vibrantes e temas sobre a flora e a fauna brasileiras.
De lá para cá, a tapeçaria assumiu outras formas, relevos, técnicas distintas foram desenvolvidas, e hoje vemos este tipo de obra participar de importantes salões de arte ao redor do mundo. Recentemente, nas versões carioca e paulista da Casa Cor, o maior evento dedicado ao design de interiores no país, vimos espaços ostentando tapeçarias (sendo que um dos mais bonitos foi uma tapeçaria de Carybé utilizada por David Bastos na versão carioca da Casa Cor) ou antigas ou contemporâneas, com destaque para o trabalho recente de Mucky Skovronsky, uma intrincada tapeçaria feita de miçangas, que apareceu tanto na Casa Cor SP quanto na do Rio de Janeiro, um sofisticado bordado que parece ter levado anos para terminar. Mas foi Norberto Nicola, cujo “estandarte” acima ilustra esse parágrafo, o primeiro artista a transformar a tapeçaria em algo mais orgânico.
Ao conhecer Jacques Douchez no Atelier Abstração de Samson Flexor, Nicola terminou por fundar o Ateliê Douchez-Nicola de tapeçaria, e junto com este, aprimorou suas técnicas de tapeçaria, incorporando novos modos de pensar e construir seu trabalho.
Claramente, uma grande influência para o trabalho desta dupla foi a polonesa Magdalena Bakanowicz, que conheceram durante a Bienal de São Paulo de 1865. Esta artista é conhecida por sues “Abakans”, título dado a uma série de trabalhos que Magdalena identificava como “situações têxteis” – intrincadas estruturas tecidas, tridimensionais, impactantes – e o contato com estas obras e esta artista seguramente impulsionou a dupla a lançar o manifesto “Formas Tecidas”, onde buscavam fugir da tapeçaria tradicional através de conceitos modernos trazendo tridimensionalidade, bem como matérias primas menos convencionais. Desta forma, a tapeçaria ganhou volume através de cordas, faixas e fitas, quase sempre utilizadas em cores intensas, buscando literalmente um lugar no espaço, de forma muito definitiva.
E, voltando ao início deste post, se os homens se dedicassem mais à linha e ao linho, mais aos fazeres manuais, manifestando sua criatividade e sensibilidade, bem provável que teriam menos tempo pensando em conquistas pessoais, em praticar a violência que parece ser um componente ancestral do homem.
Acredito muito no poder da arte em deixar o ser humano mais suave, sensível, preocupado com as forças naturais deste planeta e não se apropriando de forças não-naturais para seu bem próprio.
Creio piamente na força da expressão artística como catalizador de uma sociedade mais justa, contemporânea, preocupada com seus semelhantes e com o planeta. Utopia? Sim, por que não? Penso no dia que os homens trocarão suas espadas por agulhas, e tecerão um futuro mais justo, íntegro e humano.
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